BIBLIOLOGIA II - ERROS NO TEXTO, CRÍTICA TEXTUAL E TEXTO RECEPTUS
- MINISTÉRIO RESGATE
- 24 de mar. de 2020
- 14 min de leitura

Causas Dos Erros Na Transmissão Do Texto Bíblico
Antes da invenção da imprensa, no século XV, a transmissão de qualquer escrito, apenas poderia ser feita copiando, pacientemente, à mão, palavra por palavra. Podemos imaginar quantas probabilidades de erro tal método comporta. Experimente-se pedir a 20 pessoas que copiem determinado trecho, copiando sucessivamente, cada uma da outra cópia, no final ficaremos admirados diante do resultado obtido. Nos manuscritos tiravam-se cópias e apesar do estrito cuidado, as variantes logo apareciam.
Erros Provenientes De Uma Visão Deficiente
O escriba atingido por astigmatismo achava difícil distinguir as letras gregas que se pareciam, especialmente se o copista anterior não escreveu com cuidado. Assim num manuscrito uncial, onde o sigma era feito como sigma lunar, era fácil confundi-lo com o épsilon, o teta e o ómicron C E Y O. Se dois lâmbdas fossem escritos muito juntos poderiam ser tomados pela letra Mi, como aconteceu em Romanos 6.5, em muitos manuscritos está A L L A (mas), noutros está AMA (juntos). Há divergência em alguns manuscritos com a parte final de 1 Co 12.13. A maioria traz : "E a todos nós foi dado beber de um só Espírito"; contudo em alguns aparece : "E a todos nós foi dado beber de uma bebida". Esta variante surgiu quando alguns copistas leram erradamente IMA (a contração comum da palavra INEYMA – espírito, como IIOMA (bebida).
Erros Provenientes De Igual Terminação
Tecnicamente, este erro chama-se homoioteleuton = final igual de duas linhas. Pelo fato de duas linhas seguidas terminarem com a mesma palavra ou sílabas, os olhos do copista podiam pular da primeira para a segunda, omitindo acidentalmente várias palavras. Assim é explicada a curiosa tradução de João 17.15 no Códice Vaticano, onde não aparecem as palavras aqui colocadas entre parênteses: "Não peço que os tires do (mundo, mas que os livres do) mal". Algumas vezes, os olhos do escriba, apanhavam a mesma palavra ou grupo de palavras uma segunda vez e como resultado copiava duas vezes, o que deveria ter feito apenas uma. Em Atos 19.34 a expressão : Grande é a Diana dos efésios, aparece duas vezes do Códice Vaticano. Chama-se ditografia a repetição daquilo que ocorre apenas uma vez e haplografia a falta da repetição de uma letra ou palavra.
Erros Provenientes De Audição Deficiente
Era comum ditarem ao copista e ele escrever uma outra palavra parecida, como as nossas imersão e emersão, despercebido e desapercebido, comprimento e cumprimento. Outro problema com o ditado encontrava-se nas homônimas não homógrafas, como ilustram as palavras portuguesas: sinto e cinto, incipiente e insipiente, cocho e coxo. A confusão entre épsilon e eta, ômega e ómicron era muito comum em ditados. Um problema desta natureza está em Romanos 5.1, onde a variante tenhamos se alterna com temos, em grego ecwnen e econen. Dr. Benedito de Paula Bittencourt, em seu trabalho pioneiro de Crítica Textual em Língua Portuguesa fez a análise crítica deste versículo e a quem pedimos vênia para citar algumas de suas conclusões.
Crítica externa – Quantitativamente e qualitativamente as evidências externas parecem favorecer o subjuntivo. No entanto, descoberta recente, a do fragmento do MS 0220, vem suprir o que falta a P. 46, que começa em 5.17. Este manuscrito, cuja leitura é dificultada pelo estado em que se encontra, parece indicar que o verbo está escrito com ómicron e não com ômega, sendo, no caso, um indicativo e não subjuntivo, como indicam os escribas primários do Sinaítico e Vaticano. Crítica interna – Se a Teologia de Romanos e dos escritos paulinos como um todo for examinada, poderá o crítico chegar a uma conclusão final, na qual os elementos já compulsados das evidências externas darão sua colaboração conclusiva. O indicativo dá ideia de algo ativo no presente, enquanto o subjuntivo é modo exortativo e que traz em si a idéia de ação almejada no tempo futuro. Há no subjuntivo também a idéia de ordem, imperativa. O subjuntivo coloca o Apóstolo exortando o homem justificado pela fé em Cristo a alcançar por seus esforços sua paz com Deus. Mas, isto é contra o pensamento paulino. Para Paulo não há necessidade de esforços humanos para alcançar paz com Deus, pois o homem é incapaz de realizar sua própria salvação e mesmo manter sua paz. Cristo, e somente Cristo, é seu Salvador e só Ele é capaz de reconciliar o homem com seu Deus e lhe dar paz. Esta é a ideia do indicativo (O Novo Testamento, p. 199-200).
No grego Coinê os ditongos oi, ui, e as simples vogais h, i, u não apresentavam diferença de pronúncia soando todos como o nosso "i" resultando daí trocas entre hmeiv = nós e umeiv = vós; eieroiv = outros e eiairoiv = companheiros (Mt 11.16). Em Hebreus 4.11 o escriba do Códice Claromontano escreveu aletheias = verdade, por apeitheias (desobediência) com resultados desastrosos para o sentido. A declaração de Paulo de 1Co 15.54: "tragada foi a morte na vitória (nicós em Grego)" está no papiro 46 e Códice B: "tragada foi a morte no conflito (neicós)".
Erros De Memória
Estes erros surgiram porque a memória falhava enquanto o copista olhava para o manuscrito e procurava escrever o que lá se encontrava. Este tipo de erro explica a origem de um grande número de mudanças, especialmente nos evangelhos sinóticos, envolvendo a substituição de sinônimos, variação na ordem das palavras, troca de palavras por influência de outra passagem paralela, talvez conhecida do escriba. A substituição de sinônimos aparece em exemplos como : eipen por efe, ec por apó, etc. Um exemplo de troca de palavras temos em Mt 19.16-17, onde alguns copistas alteraram o relato para que este concordasse com Mc 10.17 e Lc 18.18. À declaração de Cl 1.14 copistas acrescentaram em alguns manuscritos, "através do seu sangue", por influência da passagem paralela de Ef 1.7.
Erros De Julgamento
Encontramos alguns erros que apenas podem ser explicados por culpa de copistas pouco inteligentes ou descuidados. Palavras ou notas explicativas, encontradas na margem, eram muitas vezes, incorporadas ao texto do Novo Testamento. Ao copista encontrar na margem, notas explicativas como sinônimos de palavras difíceis, correções, comentários pessoais, ficava perplexo sem saber o que fazer com elas. Alguns resolveram o problema da seguinte maneira – colocaram a nota no texto que estavam copiando. Há manuscritos que trazem acrescentadas a Rm 8.1 as seguintes palavras: "que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito". Esta era uma nota explicativa na margem do primeiro versículo, talvez tirada do verso quatro.
Somente descuido em alto grau pode justificar alguns absurdos perpetrados por escribas pouco perspicazes. Talvez um dos piores desatinos cometidos por um escriba se encontra no manuscrito 109 do século XIV. Este manuscrito, dos quatro evangelhos, agora no Museu Britânico, foi transcrito de uma cópia que deve ter tido a genealogia de Jesus era duas colunas de 28 linhas cada uma. Em vez de transcrever o texto seguindo as colunas em sucessão, o escriba do 109 copiou a genealogia seguindo as linhas através das duas colunas, surgindo como era de se esperar um resultado desastroso. Quase todos os filhos estão com os pais trocados; Deus é dado como filho de Adão e Fares é a fonte de toda a raça e não Deus.
Erros Intencionais
Por estranho que pareça, os escribas que pensavam, eram mais perigosos do que aqueles que se limitavam a copiar o que tinham diante de si. Muitas das alterações, que podem ser classificadas como intencionais foram, sem dúvida, introduzidas de boa fé por copistas que criam estar corrigindo erros ou infelicidades de linguagem, que se haviam introduzido no texto sagrado e precisavam ser retificados. A despeito da vigilância de eclesiásticos zelosos, alguns escribas, chocados com erros reais ou imaginários, de ortografia, gramática e fatos históricos, deliberadamente, introduziram mudanças no que estavam copiando.
Correções Na Ortografia, Gramática E Estilo
O livro de Apocalipse, com seus freqüentes semitismos e solecismos, apresentava muitas tentações aos escribas zelosos da correção gramatical. Para melhorar a sintaxe do nominativo depois da proposição apó (Ap 1.4), eles inseriram tou, Qeou ou Kurivon. O escriba culto era tentado a melhorar a linguagem.
Correções Harmonizadoras
Intencionalmente ou não, procurando harmonizar passagens paralelas ou relatos idênticos, os copistas alteravam algumas passagens bíblicas.
Os exemplos são muitos, mas aqui serão apresentados somente dois: Em João 19.20 encontra-se a expressão – Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus, estava escrito em hebraico, latim e grego. Em muitos manuscritos, os copistas acrescentaram no texto de Lucas 23.38, isto foi escrito em hebraico, latim e grego; a forma mais curta da Oração do Senhor em Lc 11.2-4 foi alterada, em muitas cópias, para concordar com a forma mais familiar e mais longa encontrada em Mateus 6.9-13.
Acréscimo De Complementos Naturais E Semelhantes
A obra dos copistas na amplificação e arremate das frases é evidente em muitas passagens.
Vários escribas, supondo que algo estava faltando na declaração de Mt 9:13 "Pois não vim chamar os justos, mas os pecadores" acrescentavam "ao arrependimento". Outros copistas achavam difícil deixar a palavra escriba, sem acrescentar fariseu, como aconteceu em Mt 27.41. Em Cl 1.23 há um interessante exemplo ilustrando como os copistas não resistiram à tentação de realçar a dignidade do Apóstolo Paulo. Neste verso Paulo diz que ele se tornou ministro do Evangelho, em grego está "diácono". Sendo que a palavra grega "diácono" significa, literalmente, aquele que serve ministro, passou a designar uma ordem inferior do ministério, isto é, aqueles que executam trabalhos mais simples na Igreja; os copistas dos manuscritos alefe a e P mudaram diáconos para querix e apóstolos, por acharem que estes títulos eram mais apropriados ao grande Apóstolo dos Gentios. O manuscrito A traz os três títulos para Paulo – arauto, apóstolo e ministro.
Esclarecimento De Dificuldades Históricas E Geográficas
A citação de Mc 1.2 é introduzida pela fórmula "Como está escrito no profeta Isaías". Acontece que a citação é proveniente dos profetas Isaías e Malaquias: Isaías 40.3 e Malaquias 3.1. Alguns escribas sentindo esta dificuldade substituíram a expressão "no profeta Isaías" por "nos profetas". Sendo que Mateus 27.9 atribui ao profeta Jeremias o que na realidade veio de Zacarias 11.12; não é de admirar que alguns copistas procurassem corrigir o erro, substituindo o nome, ou omitindo-o. Alguns copistas tentaram harmonizar o relato da cronologia da paixão com a de Marcos, pela mudança da "hora sexta" de João 19.14 para "terceira hora", que aparece em Marcos 15.25. Porque a declaração de Marcos 8.31 - "depois de três dias ressuscitará", parece envolver um problema cronológico, alguns copistas a alteraram para "ao terceiro dia".
Duplicidade De Textos
O que faria um escriba cuidadoso quando descobria que a mesma passagem fora dada diferentemente em dois ou mais manuscritos que tinha diante de si? Em vez de fazer uma escolha entre as duas variantes (com a probabilidade de omitir a genuína) muitos incorporaram as duas na mesma cópia que estavam transcrevendo. Isto produziu a chamada duplicidade de textos ou de leituras, característica predominante da família bizantina. Os dois exemplos seguintes confirmam este fato: A declaração de Lucas de que os discípulos estavam continuamente no templo bendizendo a Deus, aparece em alguns manuscritos, "estavam continuamente no templo orando a Deus". Não poucos copistas concluíram que era mais seguro transcrever as duas declarações, aparecendo assim: "estavam continuamente no templo orando e bendizendo a Deus". Atos 20.28 aparece em alguns manuscritos como: "Igreja de Deus", e em outros: "Igreja do Senhor". Vários manuscritos posteriores trazem "Igreja do Senhor e Deus".
Alterações Feitas Por Questões Doutrinárias
Estas alterações são difíceis de serem avaliadas.
Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Eusébio e muitos outros Pais da Igreja acusaram os heréticos de corromperem as Escrituras para apoiarem suas opiniões pessoais. Por exemplo, Márcion tirou do Evangelho de Lucas todas as referências judaicas relacionadas com Jesus. A Harmonia dos Evangelhos de Taciano traz várias alterações textuais para apoiar suas opiniões ascéticas. Os manuscritos do Novo Testamento preservam traços de duas espécies de alterações dogmáticas: as que envolvem eliminação ou alteração do que era considerado doutrinariamente inaceitável ou inconveniente e as que introduziram dentro das Escrituras "provas" para uma prática ou um dogma teológico. Os exemplos são muitos, como podem ser vistos em The Text of the New Testament, página 202 e 203, mas destes apenas um será transcrito: Escribas que não podiam harmonizar a declaração de Jesus de Mt 24.36 e Mc 13.32 "que Ele não sabia o dia da sua vinda", com a sua divindade, omitiam a expressão: "nem o Filho".
Acréscimo De Pormenores :
Acréscimos feitos na margem ou em notas no rodapé, uma vez ou outra eram introduzidos para o texto. Sempre houve e ainda há grande curiosidade em saber o nome de alguns personagens que aparecem anonimamente no texto bíblico. Como a tradição dava nomes a estas pessoas, copistas eram tentados a colocá-los no texto que estavam copiando. Velhos Manuscritos latinos apresentam os seguintes nomes para os dois ladrões crucificados com Cristo: Zoatan, Camma, Magatras. Entre nós é comum ouvirmos que o nome do bom ladrão era Dimas. O nome do 163 Faculdade e Seminário Teológico Nacional Ensino à Distância homem rico de Lucas 16.19 aparece na versão saídica como Níneve ou Ninivita, nome comum para ricos dissolutos naquele tempo. Uma adição apócrifa num antigo manuscrito latino declara que quando Jesus foi batizado uma tremenda luz brilhou da água atemorizando a todos os que estavam presentes. Os títulos dos livros apresentam curiosidades dos amanuenses. O mais original neste aspecto é o título que o copista do manuscrito 1775 deu ao Apocalipse: "Apocalipse do todo glorioso evangelista, amigo do peito de (Jesus), virgem, amado de Cristo, João – o teólogo, filho de Salomé e Zebedeu, mas filho adotivo de Maria, a mãe de Deus, e filho do trovão"
Conclusões
Todos os estudiosos dos problemas dos copistas estão bem cientes de que o estudo comparativo de vários textos é de grande ajuda para a eliminação destes erros. Estes erros têm sido denominados de periféricos, porque não abrangem a essência dos ensinamentos divinos. Quem sabe pessoas iniciantes ou despreparadas em "Crítica Textual" pensem da seguinte maneira: este estudo não deveria ser apresentado, porque pode levar pessoas a descrerem da Palavra de Deus e a concluírem que os escribas eram descuidados, caprichosos e tendenciosos. Verdades e realidades não podem e não devem ser escondidas.
Todos devem ter em mente esta verdade fundamental: o que foi apresentado neste capítulo aconteceu com alguns manuscritos e com poucos copistas, o que vem mostrar a fragilidade da natureza humana. Existem muitas evidências mostrando o trabalho dedicado, cuidadoso, honesto e fidelíssimo da maioria dos copistas, bem como abundante conquista de manuscritos não alterados, que nos levam a crer firmemente na fidelidade da transmissão das Santas Escrituras. A Crítica Textual não abate os fundamentos da nossa crença, antes os solidifica.
A Crítica Textual E A Bíblia
A palavra crítica origina-se do verbo grego "krino" que significa julgar. A crítica textual tem como primeiro objetivo conhecer a exatidão de um texto. Muitos dignos cristãos, bem intencionados, mas mal esclarecidos têm protestado energicamente contra qualquer aplicação da crítica textual à Bíblia. Para eles é simplesmente absurda a ideia de aplicar a crítica em relação à Bíblia. Perguntam eles: Como submeter a Palavra de Deus, obra do Espírito Santo, aos critérios humanos? Esta simples frase resolveria todos os problemas: O texto original (ou melhor, o autógrafo) da Bíblia é totalmente isento de erros, mas não as cópias feitas por copistas passíveis às falhas humanas. Até à invenção da imprensa, no século XV, os manuscritos eram produzidos por copistas, que freqüentemente cometiam erros de transcrição. Quando sabemos que os manuscritos eram recopiados uns dos outros, sem ser possível a conferência com o texto original é fácil concluir, que os erros tendiam a multiplicar-se nas cópias posteriores.
A finalidade essencial da crítica textual é restabelecer em toda a sua pureza o texto como saiu das mãos do autor, isentando de erros dos copistas, tais como adições indevidas, notas marginais que foram inseridas no texto ou correções tendenciosas visando atenuar, ou torcer o sentido de uma frase, modificar o estilo, transformar o pensamento de um escritor. Os que atacam a crítica textual demonstram o seu despreparo nesta ciência. Para que o trabalho da crítica textual seja efetivo é necessário em primeiro lugar possuir razoável conhecimento das línguas bíblicas; seguindo-se um inventário tão completo quanto possível dos manuscritos, como a sua classificação em famílias; a coerente aplicação dos métodos da crítica textual, até chegar às causas primordiais dos erros na transmissão do texto bíblico.
Entende-se por crítica textual toda pesquisa científica em busca da verdadeira forma de um documento escrito no original, ou, pelo menos, no texto mais próximo do original. No que diz respeito aos autores dos últimos quatro séculos, depois da genial invenção de Gutenberg, podemos estar certos de possuirmos suas obras exatamente como foram escritas, salvo raras exceções, particularmente quanto a erros tipográficos de menor importância. Já não se pode dizer o mesmo a respeito das obras que circularam em manuscrito, antes da invenção da imprensa. Não é de admirar que os escritos copiados múltiplas vezes, umas cuidadosamente, mas outras sem maiores cuidados, e isto durante séculos, sofressem múltiplas e variadas alterações. Isto constitui, nos diferentes documentos conhecidos da mesma obra, o que se chama de variantes ou textos divergentes. E a crítica textual, particularmente a do Novo Testamento, tem por objetivo a escolha do texto, entre todos os encontrados nos vários manuscritos, que possua a maior soma de probabilidades de ser o original ou a forma primitiva do autógrafo, já que não possuímos nenhum dos autógrafos do Novo Testamento, mas apenas cópias e algumas delas distantes mais de dois séculos do original. Esta busca científica dos originais ou dos textos que lhes sejam mais próximos é de extrema dificuldade, cheia de problemas de vasta complexidade. A regra geral nos leva a concluir que, quanto mais distante dos autógrafos, tanto quanto ao tempo como quanto ao número de cópias, maior a corrupção do texto, maior a soma de erros. No entanto, esta regra não é absoluta. Há obras, e o Novo Testamento é deste tipo, onde a matéria em si leva o copista a correções intencionais, e a corrupção, neste caso, não estaria em função da distância que separa a cópia de seu original, nem quanto ao número de cópias, nem mesmo quanto ao tempo, mas em função direta e inequívoca a matéria a ser copiada. Entretanto, o maior número de cópias torna os serviços do crítico mais suaves, pois o pequeno número de manuscritos conduz à probabilidade de perda, alguns lugares, da verdade original, que só pode ser alcançada mediante conjetura, processo deveras precário. Dr. Benedito P. Bittencourt, já várias vezes citado, inquestionavelmente, uma das maiores autoridades em crítica textual no Brasil, assim escreveu no capítulo “A Tarefa da Crítica Textual”.
O Novo Testamento leva, quanto ao tempo que separa os mais antigos manuscritos de seus originais, grande vantagem sobre os clássicos. Possui o Novo Testamento cópias completas dentro do quarto século. Há partes, como as do Papiro Chester Beatty, por exemplo, que se situam na primeira metade do século terceiro e até mesmo no último quartel do segundo, como o caso do Papiro de Bodmer. Há mesmo um fragmento bem perto de seu autógrafo: é o fragmento de papiro P52, situado na primeira metade do século segundo, e mesmo no seu primeiro quartel por alguns paleógrafos, distando, assim, menos de cinqüenta anos de seu original, se colocarmos o Evangelho de João, que P52 representa, na última década do primeiro século. A tarefa do crítico é reagir contra os erros dos copistas. Ninguém deve recear a tarefa, nem mesmo menosprezá- la, quando se pode afirmar, com os entendidos do assunto, que não só os grandes manuscritos, mas também os mais antigos papiros atestam a integridade geral do texto sagrado. E, todavia, a incontestável autoridade da Lagrange diz que entre esta pureza substancial e um texto absolutamente igual aos originais há distância apreciável. Se nos lembrarmos de que os manuscritos e citações diferem entre si entre 150.000 e 250.000 vezes e que um estudo só do Evangelho de Lucas revelou mais de 30.000 passagens diferentes e que, como afirma a autoridade de M. M. Parvis, "não há uma só sentença do Novo Testamento na qual a tradição seja uniforme", sentiremos a grandeza e a responsabilidade da tarefa. Há uma afirmação do mesmo prof. Parvis, da Universidade de Chicago, que surge aos olhos do leigo como um choque' tremendo e que só pode ser avaliada pelos estudiosos da matéria, que o presente Autor não pode deixar de transcrever: "Até que esta tarefa esteja completa, a incerteza a respeito do texto do Novo Testamento permanece". Note-se, todavia, que a elevada cifra de variantes, em sua maioria esmagadora, diz respeito a questões que não afetam o sentido profundo do texto e que o número de variantes que se revestem de importância, especialmente no que diz respeito à doutrina, é assaz reduzido. A tarefa da crítica textual do Novo Testamento é, diz Kenyon, "o mais importante ramo da ciência". Ela trata com um livro cuja importância é imensurável e vital, mais importante que qualquer outro livro do mundo, pois o Novo Testamento é único, nem mesmo comparação pode sofrer. É tarefa básica, pois dela dependem as outras ciências bíblicas. A crítica textual lança os fundamentos sobre o qual a estrutura da investigação espiritual deve ser construída. Sem um bom texto grego, tão mais próximo dos autógrafos quanto lhe permitam os labores da crítica textual, não é possível fazer segura exegese, hermenêutica, crítica histórica ou literária, nem mesmo teologia, para não falarmos em tradução. Embora seja chamada de baixa critica e bem modestos os seus esforços, é fundamental e indispensável ao estudante do Novo Testamento, desde o tradutor até o teólogo. O crítico textual tem por função, primeiro, a coleta do material documentário, que encontra no exame de vários manuscritos, versões e noutro elemento muito precioso, ainda não mencionado, as citações dos chamados Padres Apostólicos. Depois se entregará ao exame crítico desse material, pela estima de sua chacota. Para que ele possa realizar bem sua primeira função é necessário que esteja familiarizado com o material, terreno onde realiza suas investigações. Deve conhecer não só os vários manuscritos, versões e citações dos antigos escritores da Igreja Cristã, como também o modo pelo qual foram produzidos, os usos da escrita literária e não literária do tempo, o material usado, o destino e o objetivo final dessa mesma produção [...] Para que possa realizar a segunda parte, mais profunda, mais difícil e que requer mente bem educada e de grande relevância intelectual, deve conhecer a própria história do texto, os métodos da crítica textual, teologia do autor cujo livro se examina, a história das doutrinas, a língua original, particularmente sua gramática, e um conhecimento cultural da época do autor e dos escritos cujas cópias considera. Por estas ligeiras indicações o leitor pode ver, não só a extensão, mas as implicações desta ciência. Isto para não falarmos em paleografia, arqueologia, conhecimento dos clássicos, como quer a escola alemã, pois se pressupõe este trabalho já realizado pelos respectivos especialistas e colocado ao alcance do crítico textual através da caracterização dos vários documentos (O Novo Testamento, Cânon – Língua – Texto, pp. 71-75).
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