HERMENÊUTICA - O PERDÃO E A ESPERANÇA
- MINISTÉRIO RESGATE
- 27 de mar. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 22 de jul. de 2020

Eu disse no capítulo anterior que a castidade era a menos popular das virtudes cristãs. Mas não estou tão certo disso. Acredito que haja uma virtude ainda menos popular, expressa na regra cristã Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Porque, na moral cristã, amar o próximo inclui amar o inimigo, o que nos impinge o odioso dever de perdoar nossos inimigos.
Todos dizem que o perdão é um ideal belíssimo até terem algo a perdoar, como nós tivemos durante a guerra. Nesse momento, a simples menção do assunto é recebida com bramidos de ódio. Não é que as pessoas julguem essa virtude muito elevada e difícil de praticar: julgam-na, isto sim, odiosa e desprezível. Essa conversa nos dá nojo, dizem. E metade de vocês já deve estar querendo me perguntar: E, se você fosse judeu ou polonês, perdoaria a Gestapo ?
Normalmente, a afeição natural deve ser encorajada. No entanto, seria um erro pensar que o caminho para se obter a caridade consiste em sentar-se e tentar fabricar bons sentimentos. Certas pessoas são frias por temperamento; isso pode ser um azar para elas, mas é tão pecaminoso quanto ter problemas de digestão — ou seja, não é pecado. Isso não lhes tira a oportunidade nem as exime do dever de aprender a caridade. A regra comum a todos nós é perfeitamente simples. Não perca tempo perguntando-se se você ama o próximo ou não; aja como se amasse. Assim que colocamos isso em prática, descobrimos um dos maiores segredos. Quando você se comporta como se tivesse amor por alguém, logo começa a gostar dessa pessoa. Quando faz mal a alguém de quem não gosta, passa a desgostar ainda mais dessa pessoa. Já se, por outro lado, lhe fizer um bem, verá que a aversão diminui. Existe, porém, uma exceção a essa regra. Se você lhe fizer um bem, não para agradar a Deus e obedecer à lei da caridade, mas para lhe mostrar como você é uma pessoa capaz de perdoar, para lhe deixar em dívida e para sentar-se à espera de manifestações de gratidão, provavelmente vai decepcionar-se. (As pessoas não são bobas: elas têm um olho clínico para todas as formas de exibicionismo ou condescendência paternalista.) Sempre, porém, que fizermos o bem ao próximo por ser ele um eu igual a nós, criado por Deus, que deseja sua própria felicidade como nós desejamos a nossa, teremos aprendido a amá-lo um pouco mais ou, no mínimo, a desgostar dele um pouco menos.
Consequentemente, apesar de a caridade cristã parecer fria para as pessoas cujas cabeças estão cheias de sentimentalismo, e apesar de ser bem diferente da afeição, ela nos conduz a este sentimento. A diferença entre um cristão e um ímpio não é que este tem afeições e gostos pessoais ao passo que o cristão só tem a caridade. O ímpio trata bem certas pessoas porque gosta delas; o cristão, tentando tratar a todos com bondade, tende a gostar de um número cada vez maior de pessoas no decorrer do tempo — inclusive de pessoas de quem ele não poderia imaginar que um dia fosse gostar.
A mesma lei espiritual funciona de maneira terrível no sentido oposto. Pode ser que os alemães, de início, maltratassem os judeus porque os odiassem; depois, passaram a odiá-los ainda mais por tê-los maltratado. Quanto mais cruel você é, mais ódio você terá; quanto mais ódio tiver, mais cruel será - e assim para sempre, num círculo vicioso perpétuo.
O Bem e o Mal aumentam ambos à velocidade dos juros compostos. E por isso que as pequenas decisões que eu ou você tomamos todos os dias têm tanta importância. O menor gesto de bondade feito hoje garante a conquista de um ponto estratégico a partir do qual, em alguns meses, você poderá alcançar vitórias nunca sonhadas. Já uma concessão aparentemente trivial à luxúria ou à ira significa a perda de uma colina, de uma linha férrea ou de uma cabeça de ponte a partir das quais o inimigo poderá lançar um ataque que, de outro modo, seria inviável. Alguns escritores usam a palavra caridade para designar não somente o amor cristão entre seres humanos, mas também o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. As pessoas costumam preocupar-se mais com este último. Ouviram dizer que devem amar a Deus, mas elas não encontram esse amor dentro de si. O que devem fazer ? A resposta é a mesma de antes. Aja como se você amasse. Não fique sentado tentando fabricar esse sentimento. Pergunte a si mesmo: Se estivesse certo de que amasse a Deus, o que eu faria ? Quando encontrar a resposta, No geral, o amor de Deus por nós é um tema muito mais seguro que o nosso amor por ele. Ninguém consegue ter sempre o sentimento de devoção: e, mesmo que conseguisse, não são os sentimentos que mais importam a Deus. O amor cristão, seja para com Deus, seja para com os homens, é um assunto da vontade. Se nos esforçamos para obedecer à sua vontade, estamos cumprindo o mandamento Amarás o Senhor teu Deus. Ele nos dará o sentimento do amor se assim desejar. Não podemos criá-lo por nós mesmos nem podemos exigi-lo como se fosse um direito nosso. Porém, a grande coisa a se lembrar é que, apesar de nossos sentimentos irem e virem, o amor dele por nós não se altera. Não se desgasta por causa dos nossos pecados nem por nossa indiferença. Logo, é inflexível em sua determinação de que seremos curados desses pecados custe o que custar, seja para nós, seja para ele.
A ESPERANÇA
A esperança é uma das virtudes teológicas. Isso quer dizer que (ao contrário do que o homem moderno pensa) o anseio contínuo pelo mundo eterno não é uma forma de escapismo ou de auto-ilusão, mas uma das coisas que se espera do cristão. Não significa que se deve deixar o mundo presente tal como está. Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram exatamente os que mais pensavam no outro mundo. Os apóstolos, que desencadearam a conversão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que aboliram o tráfico de escravos - todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixaram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui. Se você aspirar ao Céu, ganhará a Terra de lambuja; se aspirar à Terra, perderá ambos. Essa regra parece esquisita, mas pode-se observar algo semelhante em outros assuntos. A saúde é uma grande bênção, mas, no momento em que fazemos dela um dos nossos principais objetivos, nos tornamos hipocondríacos e passamos a imaginar que há algo de errado conosco. Só nos mantemos saudáveis na medida em que queremos outras coisas além da saúde: comida, jogos, trabalho, lazer, a vida ao ar livre. Do mesmo modo, nunca conseguiremos salvar a civilização enquanto for esse o nosso principal objetivo. Temos de aprender a querer outra coisa ainda mais do que queremos isso.
A maioria de nós acha muito difícil desejar o Paraíso - a não ser que por esse nome queiramos dizer o encontro com os amigos que já morreram. Uma das razões dessa dificuldade é que não tivemos uma boa formação: toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo. Outra razão é que, quando o verdadeiro anseio pelo Paraíso está presente em nós, não o reconhecemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a examinar profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo que não pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo tipo que nos prometem isso que queremos, mas que nunca cumprem o prometido. Aquele anseio que nasce em nós quando nos apaixonamos pela primeira vez, quando pela primeira vez pensamos numa terra estrangeira, quando começamos a estudar um assunto que nos entusiasma, é um anseio que nenhum casamento, viagem ou estudo pode realmente satisfazer. Não estou falando aqui do que costumam chamar de casamentos infelizes, férias frustradas e carreiras fracassadas, mas sim das melhores possibilidades em cada um desses campos. Havia algo que vislumbramos no primeiro instante de encantamento e que simplesmente desaparece quando o anseio se torna realidade. Acho que todos sabem do que estou falando. A esposa pode ser uma boa esposa, os hotéis e a paisagem podem ter sido excelentes, e talvez a Química seja uma bela profissão: algo, porém, nos escapou. Ora, existem duas maneiras erradas, e uma certa, de lidar com esse fato.
(1) A Via do Tolo — Ele põe a culpa nas próprias coisas. Passa a vida toda a conjecturar que, se arranjasse outra mulher, fizesse uma viagem mais cara, ou seja lá o que for, conseguiria dessa vez capturar essa coisa misteriosa que todos nós procuramos. A maior parte dos ricos entediados e descontentes do nosso mundo são desse tipo. Eles passam a vida toda pulando de uma mulher para outra (com a ajuda dos tribunais), de continente para continente, de passatempo para passatempo, sempre na esperança de que o último será, enfim, a coisa certa, e sempre decepcionados.
(2) A Via do Homem Sensato Desiludido - Logo ele conclui que tudo não passava de conversa fiada. E bem verdade, diz ele, que, quando é jovem, a pessoa se sente assim. Quando chega à minha idade, porém, você desiste de buscar o fim do arco-íris. Então, ele se acomoda, aprende a não esperar muito da vida e reprime a parte de si mesmo que, nas suas palavras, costumava uivar para a lua. Essa é, sem dúvida, uma via bem melhor que a primeira; torna o homem mais feliz e não faz dele um problema para a sociedade. Tende a torná-lo um chato (sempre pronto a se achar superior diante dos que julga adolescentes), mas, de maneira geral, faz com que ele leve uma vida sem grandes sobressaltos. Seria a melhor opção se o homem não tivesse uma vida eterna. Mas suponha que a felicidade infinita realmente exista e esteja logo ali, à nossa espera. Suponha que realmente seja possível alcançar o fim do arco-íris — nesse caso, seria uma pena descobrir tarde demais (imediatamente após a morte) que, por causa do nosso suposto bom senso, sufocamos em nós mesmos a faculdade de gozar dessa felicidade.
(3) A Via Cristã - Dizem os cristãos: As criaturas não nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome: bem, existe o alimento. Um patinho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o desejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um desejo que nenhuma experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo. Se nenhum dos prazeres terrenos satisfaz esse desejo, isso não prova que o universo é uma tremenda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para despertá-lo e sugerir a verdadeira satisfação. Se assim for, tenho de tomar cuidado, por um lado, para nunca desprezar as bênçãos terrenas nem deixar de ser grato por elas; por outro, para nunca tomá-las pelo algo a mais do qual são apenas a cópia, o eco ou a miragem, Tenho de manter viva em mim a chama do desejo pela minha verdadeira terra natal, a qual só encontrarei depois da morte; e jamais permitir que ela seja arrasada ou caia no esquecimento. Tenho de fazer com que o principal objetivo de minha vida seja buscar essa terra e ajudar as outras pessoas a buscá-la também.
Não devemos nos preocupar com os irônicos que tentam ridicularizar a esperança cristã do Paraíso dizendo que não querem passar a eternidade tocando harpa. A resposta que devemos dar a essas pessoas é que, se elas não entendem os livros que são escritos para adultos, não devem palpitar sobre eles. Todas as imagens das Escrituras (as harpas, as coroas, o ouro etc.) são, obviamente, uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os instrumentos musicais são mencionados porque, para muita gente (não todos), a música é o objeto conhecido nesta vida que mais fortemente sugere o êxtase e a infinitude. A coroa é mencionada para nos dar a entender que todo aquele que estiver reunido com Deus na eternidade tem parte no seu esplendor, no seu poder e na sua alegria. O ouro é citado para nos dar a ideia da eternidade do Paraíso (o ouro não enferruja) e também da sua preciosidade. As pessoas que entendem esses símbolos literalmente poderiam também pensar que, quando Cristo nos exortou a ser como as pombas, quis dizer que deveríamos botar ovos.
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